Desde que a pandemia de Covid-19 se instalou em Portugal, o sector da Saúde tem sido alvo de uma transformação digital inédita, não apenas ao nível do acesso ao médico, com o desenvolvimento das teleconsultas e da telemedicina, mas também da distribuição, com a proliferação de plataformas online que passaram a comercializar medicamentos, inclusive os sujeitos a prescrição médica.
«Os mesmos produtos que as pessoas estavam habituadas a encontrar na farmácia e na Grande Distribuição democratizaram-se e estão agora em todos os canais», frisam os participantes no mais recente pequeno-almoço debate da Marketeer dedicado à indústria farmacêutica.
Contudo, as mudanças ao nível da distribuição não são necessariamente positivas para a indústria. Isto porque, apesar de algumas farmácias e grupos de farmácias terem já desenvolvido as suas próprias plataformas de e-Commerce, estas ainda têm pouca expressão e escala, sendo que uma grande fatia do mercado está nas mãos de plataformas estrangeiras que praticam preços «muito mais competitivos».
«Não temos um grande player de e-Commerce a funcionar em Portugal e isso é uma lacuna enorme. Se analisarmos o ranking de sites, vemos uma plataforma espanhola numa posição muito destacada [a Atida I Mifarma]. E isso é inaceitável, porque é uma oportunidade que o mercado não está a agarrar. Quando temos grupos organizados de 200, 300 farmácias, como é que não há uma plataforma de e-Commerce?», questionam os responsáveis.
Assim, por um lado, o e-Commerce é uma oportunidade para as empresas, porque permite crescer em volume, mas, por outro, é uma «ameaça para as subsidiárias», porque as vendas podem ser facturadas noutros mercados —à semelhança do que já acontece há vários anos em categorias como a perfumaria ou a dermocosmética, em prejuízo das operações locais.
Além disso, explanam os participantes, a partir do momento em que o medicamento passa a estar disponível em plataformas dispersas e que não estão associadas a farmácias, perde-se o factor da credibilidade que sempre diferenciou este canal.
«A farmácia não tem sabido tirar proveito do online para atrair consumidores. E mais tarde vamos pagar caro, porque o que nos diferenciava era a credibilidade que as nossas marcas tinham por estarem na farmácia», reiteram.
O acesso ao medicamento no mercado português carece ainda de uma plataforma de e-Commerce que seja agregadora do canal das farmácias. Esta foi uma das conclusões do mais recente pequeno-almoço debate da indústria farmacêutica.
Desta forma, para os participantes no debate promovido pela Marketeer, é fundamental para todo o ecossistema que as farmácias, seja através dos grupos que as representam ou da própria ANF — Associação Nacional das Farmácias, se organizem para criar uma plataforma que seja verdadeiramente agregadora. «Há um efeito de inevitabilidade.
Tal como aconteceu com os genéricos, um dia o e-Commerce vai ser inevitável. As plataformas que estão a ser criadas estão a antecipar este efeito de inevitabilidade. As farmácias só precisam é de se agregar para criar um efeito de escala e diminuir o custo que estas plataformas acarretam.»
Ana Ferreira (Generis), Bruno Martins (Angelini), Cristina Simões (Noreva), Manuel Barros (Generis), Rui Rijo Ferreira (Jaba Recordati), Sónia Ratinho (Laboratórios Azevedos) e Vera Grilo (Medinfar) foram os participantes no debate, que decorreu no hotel Vila Galé Ópera, em Lisboa.
De acordo com os responsáveis da indústria farmacêutica, há outro factor que tem contribuído para que o e-Commerce, associado ao canal farmacêutico, ainda não tenha tido o desenvolvimento que seria de esperar no mercado português e que está relacionado com os preços de venda dos produtos farmacêuticos.
Num ambiente de maior competitividade e onde a comparação de preços é inevitável, o e-Commerce poderá contribuir para reduzir as margens de lucro e essa é uma situação que muitas farmácias não estarão (ainda) preparadas para assumir.
Nesse sentido, o e-Commerce poderá vir a colocar um "travão" à rentabilidade das farmácias, tal como aconteceu no passado em dois momentos-chave: primeiro com a entrada da Grande Distribuição na área da Saúde; e depois com a implementação dos medicamentos genéricos.
De um modo geral, «as farmácias ainda estão em negação» em relação ao e-Commerce, mas é imperativo que «seja criada uma plataforma em que sobressaia o papel do farmacêutico», insistem.
Porque, mesmo que seja difícil de replicar no digital o papel do farmacêutico, que passa muito pela recomendação, a farmácia continua a ser o canal de referência no mercado dos produtos farmacêuticos.
«É fundamental que haja uma instituição - que pode ser a ANF -,que seja agregadora e esteja acima do medo e da negação, e que consiga criar uma plataforma que espelhe aquilo em que somos bons, que é a imagem do farmacêutico», reiteram.
Nesse sentido, ressalvam que «este é o momento de não abandonar a distribuição, e em particular a farmácia. A farmácia tem que mudar, está a mudar, e a indústria não deve - nem pode - abandonar este canal».
Com toda a incerteza e imprevisibilidade que a pandemia tem trazido, importa também fazer um balanço do mercado farmacêutico. No ano passado, e no cômputo geral, a área de consumer healthcare foi a mais prejudicada ao nível das vendas - tal como já tinha acontecido em 2020 - , o que se sentiu logo desde o primeiro trimestre com a quebra acentuada nas vendas no segmento "cough and cold" (produtos de Inverno) - embora esta tenha sido a área com maior crescimento no último trimestre do ano.
Para as equipas de vendas das empresas farmacêuticas, 2021 foi mesmo um ano «muito tortuoso, porque ter uma relação à distância e remota com os clientes é um desafio enorme e obrigou a uma evolução tecnológica que tem sido galopante», explicam os participantes.
As equipas de informação médica não conseguiram trabalhar durante um longo período de tempo, porque simplesmente não havia acesso aos hospitais e centros de saúde - o contacto com as farmácias ainda foi possível, mas só de forma remota.
Neste início de 2022, já se norta alguma retoma do mercado de consumer healthcare com variações homólogas positivas nas vendas de produtos de Inverno, vitaminas, suplementos e paracetamol (que tem sido indicado para o alívio dos sintomas associados à Covid-19).
A contribuir para esta recuperação das vendas estará o facto de, neste momento, haver já uma percentagem muito elevada (acima de 90%) da população completamente vacinada e de as pessoas estarem a "desconfinar" mais em relação ao que aconteceu no ano passado, estando mais expostas a vírus e infecções. Além disso, o acesso à farmácia também já não está tão condicionado como no passado recente.
Os responsáveis presentes no debate promovido pela Marketeer esperam que esta tendência de recuperação se mantenha no resto do ano, em particular no segmento de medicamentos OTC (over-the-counter, ou não sujeitos a receita médica), mesmo que essa retoma não seja igual em todas as categorias de produto.
Outra tendência que também sobressai neste momento é que existe uma grande afluência diária às farmácias, mas o foco da maioria das pessoas que se desloca à farmácia não é para comprar medicamentos, mas sim para realizar o teste à Covid-19.
Esta situação até poderia ter um efeito positivo nas vendas, no sentido em que os clientes podiam entrar na farmácia e comprar algum produto por impulso, mas isso «não está a acontecer».«As pessoas estão na fila para o teste e não na zona onde podiam ser atraídas para fazer uma compra por impulso», explanam. Por outro lado, muitas pessoas acabam por não ir à farmácia devido às filas que se observam.
Com o País a entrar num novo ciclo político, e apesar de o debate promovido pela Marketeer ter acontecido antes das eleições legislativas de 30 de Janeiro, os responsáveis da indústria farmacêutica apontaram aquelas que consideram ser as principais áreas de intervenção que o novo Governo deve ter em consideração na área da Saúde. São elas:
A acessibilidade do doente - Nos últimos dois anos, assistimos ao encerramento de muitas unidades de saúde que ainda não foram reabertas, principalmente no interior do País, o que criou problemas de acesso para os doentes, mas para as quais deveriam ser encontradas soluções do ponto de vista da acessibilidade;
O foco na prevenção - É preciso melhorar a área da medicina preventiva, não só no diagnóstico, mas também na saúde mental. Estudos revelam que, por exemplo, na área do diagnóstico oncológico, as doenças estão a ser identificadas em estados de evolução «muito superiores»;
O acesso à informação - A digitalização do sector e a abertura da informação são urgentes. Não faz sentido que um médico do sector privado não tenha acesso à informação que o doente tem registada no público;
O acesso à inovação - É preciso agilizar os processos de aprovação de novos medicamentos no mercado português;
A adaptação da legislação/regulamentação - Neste momento, a regulamentação é «completamente dúbia» no que diz respeito ao canal online.
É fundamental (...) criar uma plataforma que se espelhe aquilo em que somos bons, que é a imagem do farmacêutico
Fonte: MARKETEER